quinta-feira, 16 de junho de 2011

Escutatória

Esse é (mais) um texto de Rubem Alves. Gosto muito da beleza e profundidade simples do texto.
Escutar pode ser mais difícil do que parece. Arrisco a dizer que muitas vezes é a falta de uma escuta em suas vidas que faz com que as pessoas busquem a terapia. Elas buscam talvez, antes de qualquer outra coisa, uma escuta.

"Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma“. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver e preciso que a cabeça esteja vazia.

Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada...“ A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.

Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.“ Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.“ Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.“ E assim vai a reunião.

Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto..."

sábado, 11 de junho de 2011

O prazer nosso de cada dia

Quantas vezes no dia você faz algo que lhe dê prazer e alegria, sem alguma razão especial para isso? Quantas vezes você se dá um agrado, compra aquele doce cheio de calorias, aquela roupa que você gostou, aquele aparelho de TV mais moderno (ou qualquer outra coisa que lhe deixe feliz), sem pensar em como na verdade você deveria estar economizando pro futuro, ou para comprar algo "mais importante".
Você se permite ficar um dia inteiro de pijamas, sem fazer absolutamente nada além de ver TV, ouvir música, descansar, sem se sentir culpado por isso? Sem aquela pontinha de remorso e a sensação lá no fundo de que "deveria" estar fazendo algo de produtivo?
Permita-se...permita-se atender às demandas do seu organismo. Se tem vontade e necessidade de ficar em casa sem fazer nada, fique. Se a vontade surgir numa terça-feira no meio da tarde, enquanto você estiver no seu expediente de trabalho, busque outras formas possíveis de encontrar algum prazer, alguma realização naquele momento; ou no máximo adie esse cuidado e essa vontade para quando você chegar em casa. Tome um banho gostoso e demorado vez ou outra.
Nós estamos muito impregnados com os "deveria" do meio. Nossa cultura é a cultura da pressa, do "tempo é dinheiro", da proatividade, do "seja um líder", "seja excelente", e muitos outros modos de nos dizerem como temos de viver nossa vida. Já mencionei outra vez uma frase do criador da Gestalt-terapia, que é: "Quanto mais a sociedade exige que o indivíduo corresponda aos seus conceitos e idéias, menos eficientemente ele consegue funcionar".
Proponha-se a fazer todo dia, pelo menos uma coisa como um agrado a você. Simplesmente porque você merece. Saber aquilo que nos dá prazer, nos dá a sensação de realização, e reservar algum tempo de nossas vidas para isso, para nós.
Muitas vezes nem precisa ser algo grandioso. O prazer e a sensação de estar tendo um gesto de cuidado consigo mesmo pode vir de um cafezinho tomado com calma, de ouvir uma música que se gosta, de 5 minutos de conversa ao telefone com alguém que lhe seja querido; enfim, de inúmeras coisas que irão variar a cada dia.
Dedique-se a descobrir essas coisas, diariamente. Seja seu amigo, ofereça a si mesmo certos cuidados e mimos.

E aqui vai uma música que ilustra a idéia. Um bom fim de semana à todos!

quarta-feira, 8 de junho de 2011

A repetição em nossas vidas

Imagino que todos já tenham experienciado a sensação de algum "padrão" em suas vidas: "não consigo fazer sobrar dinheiro, não importa o quanto eu tente", "sempre me envolvo com quem não me dá valor", entre tantas outras situações que cada um de vocês poderá identificar. Estes foram apenas exemplos simples para mostrar algo que é "comum" em nossas vidas - a repetição.
Uma das leis que regem a nossa percepção é a Lei do Fechamento. É através dessa lei que, ao observarmos as seguintes imagens, vemos um quadrado e sentimos a vontade de completar o círculo, respectivamente.
"Mas o que tem a ver a tal Lei do Fechamento com as situações que se repetem na minha vida?". Tudo!!! Essa mesma necessidade que temos de fechar uma figura, temos no que diz respeito às situações cotidianas. Cada vez que uma necessidade emerge, que alguma situação desponta pedindo para que seja resolvida, procuramos da melhor forma possível dar um fechamento para isso; seja satisfazendo a necessidade, resolvendo a situação que tornou-se figura. Quando por algum motivo, não encontramos no meio possibilidades de dar um fechamento que nos seja satisfatório, ainda assim, encontramos o melhor jeito possível de "fechar" aquela gestalt. No entanto, como não foi algo que realmente satisfez e pôde dar a questão por encerrada, volta e meia aquela situação "vem à tona", torna-se figura novamente, pedindo novamente um fechamento satisfatório. Se por inúmeras vezes nos vemos impossibilitados de satisfazer essa nossa necessidade, ela cai no esquecimento, vira hábito.
Logo, essas situações que continuam se repetindo em nossas vidas (sejam elas quais forem e de que ordem forem), nada mais são do que situações e necessidades que ficaram inacabadas e que "voltam" pedindo um fechamento, mas que por termos sido já tantas vezes de fechá-las, nem nos damos mais conta delas. Re- petir : pedir de novo. O homem que parece se sentir atraído sempre por mulheres mandonas, a mulher que diz ter "dedo podre", o filho que se sente sufocado pela superproteção dos pais. Situações que se repetem. O jeito que nós, dentro da nossa sabedoria e capacidade intrínseca de auto-regulação encontramos de fechar aquilo que está incômodo, visto que ficou em aberto. Essas repetições podem sim, trazer sofrimento mas é a melhor forma encontrada por nós mesmos de dizer que algo precisa ser visto; algo precisa de um fechamento que nos permita encerrar um ciclo e abrir outro, totalmente disponíveis e inteiros para o novo.